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A lição do Piauí

Publicado em 27/02/2007
por Developer Unifagoc

Fica no Piauí a melhor escola de ensino médio do Brasil, de acordo com o
recém-divulgado resultado do Enem – exame aplicado a 2,7 milhões de
estudantes pelo Ministério da Educação (MEC). De 21.000 escolas públicas e
privadas avaliadas no Brasil inteiro, o Instituto Dom Barreto, uma
particular da capital, Teresina, destacou-se como exemplo de excelência.
A
campeã de Teresina surpreendeu os especialistas por duas razões. Em primeiro
lugar, por ter sido revelada num estado paupérrimo, cujas escolas – públicas
e particulares – costumam ficar entre as piores do Brasil nesse tipo de
exame.

No Enem, enquanto os piauienses patinaram numa nota ainda mais baixa
do que a brasileira – 38,7 em 100, contra uma média nacional de 42,5 –, o
Instituto Dom Barreto sobressaiu com a nota 74. Em segundo lugar, o que
chamou atenção nessa escola foi o fato de ela ter reproduzido com sucesso no
Piauí idéias que provaram ser eficientes em países onde a educação funciona,
como Finlândia e Coréia do Sul . Diz a especialista Maria Inês Fini: “”O
problema no Brasil é que as escolas estão atrás de algo que não existe: uma
fórmula mágica para o bom ensino””. Não tem dado certo, como comprovou o
Enem.

O bom desempenho do Instituto Dom Barreto deve-se, em boa parte, ao
investimento na formação e atualização dos professores. Eles não lecionam
sem antes assistir a aulas com os próprios autores dos livros didáticos,
contratados pela escola para ensiná-los a fazer o melhor uso do material.
São obrigados também a reservar uma hora do dia à confecção de um detalhado
roteiro para a aula. Uma visita ao Dom Barreto revela um fato ainda mais
incomum: longe das lamúrias típicas da classe, os professores de lá se
declaram satisfeitos – 80% estão na escola há mais de uma década.

Outro
termômetro do contentamento geral vem de relatos como o da coordenadora
Terezinha Ferreira, 42 anos, há dezoito no colégio. Ela conta que teve duas
especializações e um mestrado patrocinados pela escola. Detalhe: ao longo de
quatro anos, sua carga horária foi suavizada para que conseguisse dar conta
dos cursos. “”Eu relatava essa história a colegas de outras escolas e eles
achavam que eu estava mentindo””, lembra Terezinha.

Os professores do Dom
Barreto também concorrem a um prêmio anual, dado ao melhor profissional em
sala de aula, com base nas notas dos alunos. O campeão deste ano receberá
uma viagem à Europa. Ao contrário do que ocorre na maioria das escolas do
país, o mérito é reconhecido – e estimulado. Os maus resultados, por sua
vez, ficam em evidência.

A número 1 no Enem reforça, portanto, a eficácia de um tripé consagrado pela
experiência internacional: combina metas curriculares bem estabelecidas,
professores preparados para executá-las e um sistema desenhado para cobrar
resultados. Não espanta pela originalidade, mas, sim, pelo pragmatismo – uma
qualidade ainda distante das escolas brasileiras. A aplicação disciplinada
de fórmula semelhante também ajuda a esclarecer o sucesso das escolas
técnicas federais no ranking oficial. Na lista das 100 melhores na prova do
MEC, treze se enquadram nessa categoria, entre elas a Escola Politécnica
Joaquim Venâncio. Além do currículo básico, elas preparam os estudantes para
exercer um ofício de nível médio. São uma espécie de elite na rede pública:
com mais dinheiro, atraem os melhores alunos e professores. Resume o
especialista Claudio de Moura Castro: “”Elas estão voltadas para os
resultados – não têm espaço para conversa fiada nem discurso ideológico””. Em
comum, os estudantes das esc olas técnicas federais e da campeã Dom Barreto
permanecem oito horas em sala de aula – o dobro da média nacional (no caso
do Piauí, paga-se mensalidade de 500 reais pelo pacote, até um terço do que
cobram as melhores escolas de São Paulo). É no período extra que os alunos
assistem a aulas de xadrez, grego antigo e geografia do Piauí, descritas com
entusiasmo pelos alunos.

Esticar a jornada de estudos contribuiu nas últimas
décadas para a melhoria do ensino nos países desenvolvidos. O Enem indica
que pode funcionar também no Brasil.

As escolas de sucesso na prova do MEC são exceção num universo marcado por
maus exemplos. Num patamar que se situa entre o “”ruim”” e o “”péssimo””,
aparecem instituições como o Colégio de Vila Gustavo, na periferia da
capital paulista – a última colocada entre as particulares urbanas do estado
de São Paulo, com média 30,62 numa escala de 0 a 100. Sim, a melhor escola
brasileira está no Piauí, um dos estados mais pobres do país, e uma das
piores localiza-se em São Paulo, o mais rico. A diferença entre elas, no
entanto, é muito maior. No Colégio de Vila Gustavo, as salas vivem vazias –
professores e alunos têm o hábito de matar aula.

O geógrafo Carlos Ribeiro,
há um ano diretor da escola, reconhece o desânimo geral, problema que ele
atribui às aulas, “”monótonas”” e baseadas na “”decoreba””. “”É uma vergonha””,
admite Ribeiro. Outras comparações entre a escola de Teresina e a da
periferia de São Paulo ajudam a jogar luz sobre o abismo que as separa.
Enquanto no Dom Barreto os professores utilizam uma lousa eletrônica para
apresentar aos alunos formas geométricas, no Vila Gustavo o laboratório de
computação está desativado.

A escola do Piauí possui a maior biblioteca do
estado. Na escola de São Paulo, os livros ficavam alojados, até pouco tempo
atrás, num porão que espantava as pessoas por ser escuro e malcheiroso –
agora estão encaixotados à espera de uma nova biblioteca.

No Piauí, exige-se
dos estudantes a leitura de vinte livros por ano. Em São Paulo, os alunos é
que escolhem se lêem – ou não. E é claro que a maioria não lê nada.

Da experiência do Instituto Dom Barreto depreende-se ainda a importância de
um diretor que, além de assumir as tarefas administrativas, esteja engajado
na vida acadêmica. O matemático Marcílio Rangel de Farias – que em 1983
assumiu o comando da escola, de propriedade de uma ordem de freiras
holandesas, e a dirigiu até a sua morte, no ano passado – nunca pegou um
avião para ir à Coréia do Sul ou à Finlândia, mas tinha os livros sobre a
experiência desses países como uma espécie de bíblia. As três irmãs de
Rangel, que o sucederam na direção, continuam a acompanhar tudo o que se
passa na rotina escolar. Professores que costumam esticar o expediente
contam que é comum vê-las debruçadas sobre os boletins dos 2.400 estudantes
(do ensino infantil ao médio) que freqüentam a escola. Diante de notas
baixas, as irmãs Rangel convocam professores e alunos para diagnosticar o
problema – e traçar metas para sua solução.

Com o relatório do Enem nas mãos, as diretoras do Instituto Dom Barreto
ficariam apavoradas. Criado em 1998 para medir o nível dos estudantes ao
final do ciclo escolar, o exame do MEC revelou que, além de sofrível, a
qualidade do ensino ainda experimenta uma trajetória de queda desde 2002. A
prova, que testa a capacidade do aluno de aplicar o saber teórico a
situações práticas, mostrou que os estudantes brasileiros estão a léguas de
distância disso: enquanto 98% dos alunos da escola campeã do Piauí conseguem
vaga nas melhores universidades do país, quase metade dos jovens no Brasil
ainda empaca na leitura de um texto simples. Diz o ex-ministro da Educação
Paulo Renato Souza: “”A educação brasileira só vai deixar de ficar em último
lugar quando for implantado no país um sistema que premie as melhores
escolas e penalize as que oferecem ensino de terceira linha””. Por enquanto,
o Enem serve apenas para revelar exemplos solitários de sucesso, como o
Instituto Dom Barreto – e dar a dimensão do desastre nacional.

Revista Veja – edição 1997